Às vezes, estranhos sentimentos nos abatem. Lembro-me de quando fazia faculdade, anos 80, no Rio de Janeiro, e um negão, flanelinha, de sorriso largo, sempre guardava uma vaga pra mim. Pagava por mês, ou nem pagava, o que para nós deixou de fazer diferença. Com o crescimento da amizade, a gorjeta passou a ser apenas detalhe. A verdade é que, num local onde o furto de automóveis era comum, na minha moto ninguém mexia.
Numa noite de março, ao voltar das
férias em Marataízes, depois de curtir o carnaval do Iate Clube e muitas
baladas etílicas nos Xodó e ToaToa, percebi que o negão não estava lá. Ninguém
sabia dele. Tomava o trem vindo do subúrbio, para trabalhar, e saltava na Central
do Brasil. Era comum o noticiário da TV exibir imagens de jovens suburbanos sobre
os vagões ou pendurados perigosamente nas suas laterais.
Até que um dia disseram-me que havia
sofrido um acidente grave. Quase morreu. Não dei importância, afinal, havia
sobrevivido. Passado um mês, ou quase isso, o negão reapareceu. Percebi, pelo
nó na manga da camisa, que lhe faltava um braço. Não só o braço, seu olhar perdeu
o brilho. No semblante, a áurea serena que o distinguia esvaiu-se. O sorriso
largo ficou estreito. Quando o vi, pensei em não cumprimentá-lo, despistar, sei
lá... Fiquei sem ação.
Queria que não tivesse de sentir
pena dele, que não precisasse encará-lo frente a frente em sua miséria, que não
me reconhecesse. Definitivamente, aquele negão não era o mesmo que me esperava todos
os dias, com quem dividia a guimba do cigarro e o copo de cerveja depois das
aulas, nos bares da rua Farani, em Botafogo, junto à juventude classe média que estudava na
Santa Úrsula e na Facha. O trem havia nos roubado.
Percebi, então, que ele agia da
mesma forma. Evitava-me, não mais me esperava, até fingia não me ver. Não sei
se faltou a palavra que não consegui dizer, o aperto de mão, naquela que restou.
Agia como um estranho, machucado. Notei um vazio naqueles olhos que miravam sempre os
pés descalços, de solas grossas rachadas de asfalto, dedos achatados e unhas
tortas. Forças distintas nos afastaram, o trem terminou o maldito serviço.
Talvez minha piedade contida e a
humildade recolhida dele tenham sido mais fortes que nossa amizade. Quiçá tenha
sido uma forma de preconceito profundo, de parte a parte, que tenha freado uma
aproximação natural. Debati-me várias noites: por que nos afastamos quando mais
precisávamos um do outro para entender a vida? Só ele poderia aliviar o sentimento amargo a me apertar o peito toda vez que o via.
Poderia dizer-me que estava tudo
bem, que ia superar e tinha um futuro. Não o futuro que via em mim, já quase formado,
e que não mais fazia parte de seu mundo. O negão me devia uma resposta, ou uma pergunta, sei lá! Seu silêncio me torturou. Que futuro poderia ter? Sem o braço. Antes,
tinha esperança. Nunca mais nos vimos, mas sei que um pouco dele ainda anda comigo, e me assombra. Tomara que seja recíproco, ou fui apenas mais um babaca classe média que fingiu ser seu
amigo e lhe virou as costas quando mais precisou.